Cheguei em casa e fui
direito a Minguinho.
— Xururuca, vim fazer
uma coisa.
— O que é?
— Vamos esperar um
pouco?
— Vamos.
Sentei e encostei
minha cabeça no seu tronquinho.
— Que é que nós vamos
esperar, Zezé?
— Que passe uma nuvem
bem bonita no céu.
— Pra quê?
— Vou soltar o meu
passarinho.
— Vou, sim. Não
preciso mais dele...
Ficamos olhando o céu.
— É aquela, Minguinho?
A nuvem vinha andando
devagar, bem grande, como se fosse uma folha branca toda recortada.
— É aquela, Minguinho.
Levantei emocionado e
abri a camisa. Senti que ele ia saindo do meu peito
magro.
— Voa, meu passarinho.
Bem alto. Vá subindo e pouse no dedo de Deus.
Deus vai levar você
para outro menininho e você vai cantar bonito como sempre cantou para mim.
Adeus, meu passarinho lindo!
Senti um vazio por
dentro que não acabava mais.
— Olhe, Zezé. Ele
pousou no dedo da nuvem.
— Eu vi.
Encostei minha cabeça
no coração de Minguinho e fiquei olhando a nuvem ir-se embora.
— Eu nunca fui malvado
com ele...
Aí virei o meu rosto
contra o seu galho.
— Xururuca.
— Que foi?
— Fica feio se eu
chorar?
— Nunca é feio chorar,
bobo. Por quê?
— Não sei, ainda não
me acostumei. Parece que aqui dentro a minha gaiola ficou vazia demais...
VASCONCELOS, José
Mauro de. Meu pé de Laranja Lima. p.
42
Observar. A
caneta (tão falsa); o chinelo; o ventilador. Refletir. O lençol; a mochila; a
janela. Lembrar-se. Outro dia, pouco distante, estava mesmo pensando nestas
coisas de vida de escritor, local onde pode-se encontrar subsídios sem fim para
a construção do texto; tudo é motivo para o texto. Lembro-me em especial que há
algum tempo atrás (era um dia no ônibus) observava um homem sob a música
contínua do vai-e-vem urbano, sob um vai-tempo infinito, e percebia como ele pensava
com obstinação à respeito da escrita e em sua necessidade.
Conversei com
ele. Na verdade, já estava exausto das perguntas que ele levantava – há tempos –
sobre esse assunto, sendo que nesse dia específico pensava mais no mistério da
vida. O ônibus andava. “A janela dizia alguma coisa?”, pensou. Não dizia. E por
que diria? Estava exausto (sim, exausto) de sua necessidade constante de poesia
nas coisas, ou de coisas na poesia. E do enfastio, a promessa: jamais
escreveria sobre esse mistério. Observem que essa decisão, neste átimo no
ônibus, era de uma convicção e, ao mesmo tempo, de uma negação incrível.
Incrível mesmo. Até há algum tempo atrás, por exemplo, ele pairava sobre as
coisas e as poetizava; poesia era texto, visualmente texto; visivelmente texto.
Mas, não! Agora, não. Optava calmamente por passar a ser apenas um observador
de janelas de ônibus, e ônibus são muitos – veja. Um observador sem o
compromisso visceral de interpretar e mediar as coisas e codificar a sua
interpretação. Livrara-se deste cargo, dessa ocupação, deste estado de
espírito. Atento-me, pois percebi que naquele dia ele vomitava à janela do
ônibus todas as crônicas não escritas, os poemas fatídicos, as narrativas e os
contos que já nasciam aposentados. Era bonito ver este processo de libertação,
mas eu temia.
Observar. A
caneta tornar-se-ia, afinal, apenas um dispositivo de registro. O chinelo seria
calçado. E o ventilador ventou macio. Ah... Nunca me esquecerei deste momento
de libertação e de (re)criação. Uma semana passaria; um mês passaria; passariam
séculos... e lá estaria ele, firme, de ferro, alheio à poesia, mas atento às
coisas, usufruindo delas e amando-as com (talvez!) mais discernimento.
E é assim que
sempre quando eu estou no ônibus, penso em suas últimas palavras, como querendo
que sua imagem não suma de minha cabeça. Sua imagem me faz crer no amanhã de
esperança, tão pueril, mas tangível, que jamais quero escrever. Ao pensá-lo,
estremeço e temo. Sei que aquele rude homem jamais voltará à minha vista, mas
sinto o seu recado, íntimo, incomodando-me, como falando ao meu ouvido
“Liberte-se também”. Eu lamento a minha indiferença; quiçá lamentaria a minha
falta de coragem. No entanto, é certo o meu pacto de sempre repetir as últimas
palavras daquele homem, sob a janela do ônibus. Com vergonha (pois é pueril, eu
disse) repito aqui, neste texto metalingüístico:
- Vida boa
pela janela. Vida boa.
E as janelas
nunca mais foram as mesmas em minha vida. E em meus textos. E em tudo.